"Foi uma honra, um privilégio"
Aos 38 anos, Telma Monteiro decidiu pôr um ponto final na gloriosa carreira desportiva. No dia em que a notícia foi conhecida – 9 de dezembro –, a melhor judoca portuguesa de todos os tempos esteve na emissão da BTV, tendo aí olhado para trás, recordando momentos marcantes, explicando "a honra e o privilégio" que foi representar o Benfica durante 17 anos, mas também levantou uma ponta do véu dos dias futuros, como coordenadora do judo do Clube.
A DECISÃO DE TERMINAR A CARREIRA
"Foi uma decisão muito bem pensada. É uma decisão que eu acho que chega na melhor altura, porque foram 20 anos só no circuito sénior, portanto, foram seis ciclos olímpicos. Foi muito tempo em que lutei sempre com bastante motivação, sempre com muita energia, mas senti que agora era o momento em que queria continuar a minha vida e fazer outras coisas."
A ESTABILIDADE EMOCIONAL QUE SEMPRE A Caracterizou "Acho que tive a felicidade de conseguir conjugar muito bem a minha vida profissional de atleta com a minha vida pessoal. Ou seja, acho que, muitas vezes, nós, atletas, somos tão exigentes, principalmente no alto rendimento, no alto nível, em que procuramos sempre ser os melhores, que temos dificuldade em equilibrar a vida profissional com a vida pessoal. Eu sempre tentei aproveitar muito bem o meu tempo livre, fazer coisas de que gostava, desfrutar das pessoas que me eram próximas. Esse equilíbrio fez com que eu pudesse também ser a minha melhor versão e desfrutar ao máximo dentro do tapete. E mesmo com toda a responsabilidade, e mesmo com toda a pressão inerente àquilo que eu própria queria ser, o facto de ter esse equilíbrio fez com que eu tivesse, de um modo geral, uma carreira muito feliz e que estivesse sempre tranquila com as coisas que estavam a acontecer."
TERMINAR DE CONSCIÊNCIA Tranquila "Muito tranquila. Eu costumo pensar que, quando comecei a fazer judo, tinha sonhos. Alguns que não conseguia perceber se eram racionais ou não, se eram lógicos ou não, porque eu comecei a fazer judo tarde, portanto não tinha bem noção da dificuldade das coisas. Consegui vivê-los e tive também o privilégio de, ao longo da minha carreira, sonhar ainda mais, ou seja, foram-se criando oportunidades para que eu pudesse sonhar ainda mais coisas que eu nunca poderia ter imaginado. Então, acho que, sinceramente, a minha carreira foi quase perfeita, no sentido em que eu termino com a sensação de felicidade. Toda a gente pergunta: ‘Estás triste?’ Não, não estou triste, porque eu realmente termino com essa sensação de ter dado tudo, de ter desfrutado muito e de ter feito tudo sempre exatamente da forma que eu queria, e acho que isso é muito difícil, porque, para nós fazermos as coisas exatamente da forma que queremos, para chegarmos aonde queremos, às vezes temos de tomar decisões muito difíceis. E eu tive a sorte, não sei, de ter uma personalidade que me permitiu tomar essas decisões, e então a minha carreira foi, de um modo geral, muito feliz, como eu queria, então não há nada de que me possa arrepender."
SER UMA Referência "Sinceramente, acho que termos referências na área em que estamos torna muito mais fácil – muito mais fácil não quer dizer que a pessoa não tenha de trabalhar – ter a visão de aonde queremos chegar. E ter a visão de aonde queremos chegar é uma porta aberta para conseguirmos. E quando eu comecei a fazer judo, obviamente que tínhamos muitas referências já, mas havia muitas portas que estavam nem entreabertas, não tínhamos estado próximos, sequer próximos, de as abrirmos. E eu acho que agora isso já não acontece, agora já é mais natural uma pessoa pensar que quer ganhar um Grand Slam, quer ser campeã da Europa, quer ser medalhada ou ser campeã do mundo. Essas portas ficaram escancaradas, no bom sentido, e sinto-me feliz por, de alguma forma, ter contribuído para isso. É tudo um processo, foi a geração anterior, depois a minha, comigo, e agora é um trabalho para continuar, para a geração que está a continuar. Mas acho que agora é mais fácil as pessoas poderem ver coisas que antes nós não conseguíamos sequer ver, mas tínhamos de ter a ousadia de as sonhar."
UMA DAS RESPONSÁVEIS PELA MEDIATIZAÇÃO QUE O JUDO GANHOU NOS ÚLTIMOS Anos "Sim, hoje em dia as pessoas já sabem que o judo é mandar as pessoas ao chão, resumindo, [risos] antes pensavam que era algo mais semelhante ao karaté. Também se fala mais de judo, acho que as notícias, quando há algum atleta que ganha, chamam mais a atenção, são mais mediáticas, os próprios atletas têm mais reconhecimento pelos meios de comunicação. E o facto de eu ter tido muita consistência, de ter tido muita regularidade a ganhar medalhas, estava todos os meses praticamente a ganhar uma medalha no Grand Slam, depois já era o Europeu, o Mundial, isso foi fazendo... Eu quase obriguei as pessoas a falarem de judo. Então, isso trouxe muito mediatismo, por assim dizer, reconhecimento para a modalidade. Também é algo que me orgulha muito. Não foi algo que eu pensei, imaginei..."
O MOMENTO DE MAIOR ALEGRIA COMO ATLETA PROFISSIONAL
"É impossível [destacar um]. Eu acho que o bom da minha carreira é isso, é que eu sou capaz de me sentar aqui a dizer 10 momentos, e depois vou para ali e penso em mais 10 muito rapidamente. E digo isto dos momentos que eu tive dentro do tapete, mas também fora do tapete. Então acho que isso é um dos momentos felizes da minha carreira, uma das coisas mais felizes é eu não conseguir... Obviamente que tenho a medalha dos Jogos Olímpicos, talvez esse seja um dos momentos mais bonitos e significantes. E acho que a minha carreira se resume às características que tive de ter para vencer aquela medalha, porque tive de ter muita resiliência, em toda a minha carreira eu tive de ser muito resiliente. Mas adorei ser porta-estandarte, adorei ser atleta do Benfica, adorei ir com o Eusébio a Bruxelas… Portanto, foram tantos, que resumir a um momento só é muito difícil."
E O MOMENTO MAIS Difícil "Obviamente que não ter ido a Paris foi muito duro. O esforço que eu fiz foi recompensado de outra maneira, foi recompensado mais de uma parte de satisfação de saber que dei tudo, e ao mesmo tempo, ainda não tendo conseguido a qualificação, senti-me uma espécie de super-heroína, de recuperar de uma lesão gigante – já falei disso muitas vezes – em cinco meses, quando me davam um ano. Nessa parte eu senti-me uma super-heroína, e isso de certa forma compensou, mas, obviamente, foi um dos [momentos] mais duros de processar. Demorei um tempo para realizar que isso não ia acontecer, que eu não ia estar em Paris, mas houve outros momentos duros também relacionados com os Jogos Olímpicos. As outras vezes em que eu não consegui ser medalhada foram também momentos muito duros para mim, mas não sei se a minha carreira teria sido a mesma se esses momentos não tivessem acontecido. Eu nem consigo pensar. Penso sempre que podia ter duas ou três medalhas olímpicas e tudo mais, mas ao mesmo tempo não acho que a minha carreira teria sido a mesma se isso tivesse acontecido dessa maneira, porque isso foi-me sempre dando motivação para outras coisas. Perdi o meu treinador também, o treinador da seleção. Se tiver de dizer algum momento, esse foi talvez o mais difícil. Perder o meu treinador António Matias na seleção. Acho que nada é mais importante que a vida, portanto... Depois, outros momentos foram difíceis, mas fizeram-me enquanto atleta, fizeram-me enquanto pessoa. E a minha carreira... Eu termino tão feliz com a minha carreira, que, se me dissessem para mudar alguma coisa, não mexia, com medo das consequências que isso poderia ter depois no resto. Custaram, mas ultrapassaram-se."
APRENDER A REAGIR AO SUCESSO E AO Insucesso "Nós costumamos dizer que o judo nos humilha [risos]. Num dia a pessoa ganha, no dia a seguir a pessoa perde. Acho que foi um processo gradual, natural também. Houve momentos em que eu pensava que era intocável, que parecia que era tudo fácil de acontecer, que era facílimo ganhar. Eu ganhava combates em segundos. No judo não é assim tão comum. E era um atrás do outro a ganhar em segundos. Então às vezes tudo me parecia muito fácil, mas o judo é uma modalidade que nos ensina sempre a ser humildes. E foi um processo natural, porque, sempre que eu achei que era intocável, o judo veio mostrar-me que não era intocável e que tinha de continuar a trabalhar. E fui aprendendo a ser essa pessoa, a saber que tinha de valorizar as vitórias, mas que também tinha de saber lidar com as derrotas. E via isso como uma conquista também, porque, se a pessoa tem controlo emocional em ambas as situações, estamos sempre a ganhar. Digo sempre que, quando vamos lutar, se temos controlo emocional durante o combate, já estamos a ganhar, porque não estamos a dar nada ao nosso adversário. Então, isso também foi algo que eu fui tentando melhorar e foi algo que fui aprendendo. Às vezes à força, mas fui aprendendo."
A ADVERSÁRIA MAIS DIFÍCIL "Para mim, a mais difícil da carreira toda foi a japonesa, a [Kaori] Matsumoto. Acho que estávamos as duas no nosso auge, não sei quantas finais fizemos, quantas disputas de medalha, e a rivalidade não era uma rivalidade negativa, porque nos dávamos bem fora do tapete, fora da competição, mas eu era tão extremamente competitiva, que, se ela ficasse em 2.º, e eu ficasse em 3.º, eu já ficava chateada. Se eu ficasse em 2.º, e ela ficasse em 1.º, eu ficava sempre chateada quando ela ficava à minha frente. Mas lá está. Sou superagrata pelas minhas adversárias, porque, se tivesse sido tudo com um nível abaixo, eu também nunca teria sido a atleta que fui. Então essa rivalidade para mim foi algo também superpositivo, que fez com que me excedesse, fez com que me levasse a outro patamar e fez com que fosse a atleta que eu sou. E eu sinto ainda mais orgulho das minhas conquistas por isso, porque sei que foram difíceis."
O JAPÃO E OS CONTRASTES Culturais "Eu adoro o Japão, portanto, para mim foi sempre especial. Já estive no Japão mais de 20 vezes, e gostava de ir ao Japão de férias, portanto, estão a perceber. Foi sempre especial. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que fui, tinha 17 anos. É completamente diferente, porque nós, por exemplo, celebramos muito, celebramos muito as conquistas – quando digo nós, digo o resto do mundo, os europeus –, somos muito efusivos. Para eles, isso não é assim, para eles, celebrar é uma falta de respeito com o adversário. São mais recatados emocionalmente, procuram muito a perfeição, algo com o qual eu sempre me identifiquei, mas acho que no resto do mundo, de modo geral, as pessoas querem ganhar, querem chegar ao objetivo. E os japoneses, não, eles querem ganhar, mas querem ser perfeitos. O que, para eles, às vezes, também é demais. É um pouco exagerado para quem vê de fora. Mas eles ensinam-nos muito, não é? Basta que ver que foi onde o judo começou, portanto, só temos a aprender."
A PERDA DO TREINADOR ANTÓNIO Matias "Acho que ele era muito carismático e, para a altura em que nós estávamos no judo nacional, era um visionário, porque já tinha ideias. Ele bebia muito das pessoas com quem convivia, a nível internacional, e tentava tirar o melhor de cada sistema, perceber o que é que funcionava para Portugal. E então tinha já algumas ideias um bocado mais à frente para o nosso tempo no judo nacional. E daí que ele decidiu apostar em mim, apostar na minha irmã, apostar nas atletas jovens daquela altura, integradas na equipa sénior, e deu-nos essa oportunidade, esse voto de confiança de nos desenvolvermos, ou de nos expressarmos. E essa visão que ele teve foi aquilo que me permitiu, tão nova, ter a oportunidade de começar a ganhar. Porque, se ele não me tivesse dado a oportunidade, talvez pudesse ter começado a ganhar mais tarde, mas não naquela altura. Foi uma pessoa que realmente contribuiu muito para a modalidade, acho que ele estaria muito orgulhoso agora."
A PASSAGEM DOS -52 KG PARA OS -57 KG
"Eu na altura já tinha muitos problemas de peso, lembro-me de que na última vez, em 2007, já tinha pesado 10 quilos a mais, depois andei sempre a controlar para não ter muito peso para os Jogos Olímpicos de Pequim, que eram em 2008, ou seja, aquilo já era a minha categoria. Tenho 1,61 m – para quem não consegue perceber em casa, portanto, as minhas adversárias eram mais altas – e, numa fase inicial, adaptei-me perfeitamente. Foi muito melhor do que eu esperava, fui campeã da Europa, n.º 1 do mundo, vice-campeã do mundo, logo no primeiro ano, nem eu perspetivava uma coisa tão boa. Depois, as regras mudaram outra vez, as regras tecnicamente voltaram a mudar, e eram essas técnicas que me davam alguma facilidade em adaptar-me à categoria. Retiraram-se, e foi outra fase de adaptação, mas, pronto, no início adaptei-me bastante bem."
A RELAÇÃO DOS ATLETAS DE ALTA COMPETIÇÃO COM A Federação "Eu acho que agora está melhor, sinceramente, mas a minha insatisfação, a minha contestação, vinha sempre de eu procurar a excelência, e de achar que pode ser sempre feito melhor. E, com a qualidade dos atletas que já temos, resultados mundiais que já temos, a mim chocam-me às vezes algumas coisas, a forma como as coisas são organizadas, a forma como lidamos... Acho que temos de ter mais brio, e temos de ser mais profissionais, porque digo sempre que o respeito vem de dentro para fora, nós não podemos exigir respeito se nós próprios não nos respeitamos. E digo isto para tudo, não tem só que ver com a Federação, acho que nós temos de nos respeitar, e temos de agir da forma como queremos que nos vejam. Então, a própria Federação, como instituição, tem sempre de procurar esse caminho, seja como for. E quando eu senti que as coisas não estavam a acontecer dessa maneira, contestei. Nem sequer é uma coisa pessoal, é porque sempre fui muito exigente com a minha carreira, sempre tive a ideia de que conseguia perceber aquilo que era preciso para chegar à excelência, e forcei – de uma forma negativa, pode soar mal, mas forcei – que as estruturas acompanhassem. Mas não acho que estava errada. Acho, sinceramente, que há muito potencial e que podemos melhorar sempre. E tem de ser sempre esse o caminho, porque as coisas estão sempre a evoluir, nós temos de tentar sempre acompanhar, então é sempre nesse sentido que eu vou contestando."
O SIGNIFICADO DE REPRESENTAR O BENFICA DURANTE 17 Anos "Foi uma honra, um privilégio, uma história muito mais longa do que eu podia alguma vez imaginar, uma história indescritível. Se tivesse de pensar como é que iria ser o meu tempo no Benfica, a minha imaginação não poderia alcançar aquilo que tem sido, aquilo que foi, porque agora é uma fase diferente. Lembro-me de que – não sei se já disse isto alguma vez –, quando me contrataram para vir para o Benfica, na altura ninguém recebia, ninguém ganhava dinheiro para fazer judo. No judo havia um ou outro atleta que era mais ou menos pago, e eu lembro-me de pensar: 'Mas vão-me pagar para fazer judo?' Eu sentia-me um bocado estranha, ou seja, o Benfica abriu uma porta no judo também, comigo, e então fico mesmo muito grata por isso, porque com o Benfica transformámos o judo também. Tudo o que eu vivi aqui e continuo a viver… Eu sinto-me em casa quando venho aqui, e é um ambiente que é perfeitamente normal para mim."
O CARGO DE COORDENADORA DA MODALIDADE NO CLUBE"Significa muita responsabilidade. O trabalho que estava a ser feito até aqui foi muito bom, ou seja, já foram iniciadas algumas mudanças nos últimos anos que funcionaram muito bem para a modalidade, agora eu acho que estamos numa fase de transição, mesmo dos atletas, portanto temos de apostar muito na formação... Eu gostava de aumentar o número de praticantes, não só aqui dentro da estrutura, mas também com polos de escolas espalhadas por aí, essa também é uma parte do nosso projeto, que sejamos mais competitivos. Eu vou exigir, como exigi sempre das outras instituições, vou também exigir que possamos tentar ser assim, alargar a base, tentar sermos competitivos, tentarmos ter um nível técnico bom, que as pessoas nos respeitem como eu acho que temos de ser respeitados."
OS ENSINAMENTOS DO JUDO PARA A VIDA
"Acho que é a humildade, a resiliência, a capacidade de vermos todas as coisas que acontecem, que são difíceis, como um simples desafio a ser ultrapassado. Eu desenvolvi muito essa capacidade no judo, que foi pensar imediatamente na solução, porque nós, quando estamos dentro do combate, temos uma pessoa à nossa frente e temos frações de segundos para decidir o que é que vamos fazer, não podemos ficar a pensar que aquela pessoa é mais alta, ou mais forte, ou mais rápida, naquele momento nós temos de tomar uma decisão. E o judo trouxe-me muito essa capacidade de ser resiliente e de procurar a solução, em vez de ficar presa no problema. O judo é uma modalidade incrível."
UM NOVO POSICIONAMENTO PARA O JUDO Nacional "A nossa preocupação deve ser fomentar a formação, desenvolver novos talentos, procurar dar-lhes o máximo de condições para que eles se possam expressar nos próximos dois ciclos olímpicos, o que vai ser um desafio, mas que é possível, se trabalharmos todos em conjunto. Não é por falta de competência, às vezes é só por falta de organização dos recursos, não é tanto por falta de competência dos agentes que estão envolvidos. Mais dinheiro? Não sei... Obviamente, tem sempre de haver o investimento, mas, lá está, acho que às vezes não é tanto o dinheiro em si, é como nós gerimos os recursos, e agora eu digo recursos, recursos humanos, recursos financeiros, infraestruturas. Se conseguirmos fazer uma gestão melhor daquilo que temos... O judo nacional precisa de uma sala, e nós temos uma sala improvisada. Desde sempre. Eu comecei e vou terminar a minha carreira, e estive sempre em salas improvisadas na Seleção, portanto, logo aí já temos uma coisa que pode melhorar, e obviamente é preciso algum investimento financeiro."
Comentários
Enviar um comentário
obrigado pelo seu comentário !!!
Siga-nos no Facebook!!! https://www.facebook.com/benficaglorios/ ☚ Visita